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terça-feira, 20 de janeiro de 2015

Eu sou Charlie. Mas o outro lado também


Nunca se falou tanto em liberdade de expressão como nessas últimas duas semanas. O pós-Charlie Hebdo continua provocando uma onda de discussões teóricas, que na prática parecem significar menos do que a proporção que o tema ganhou neste período. O debate sobre os limites – que ninguém sabe como se determina – que devem ou não se impor aos meios de comunicação perde o sentido à medida que é unilateral; contempla apenas uma das partes envolvidas na polêmica que se criou após os atentados à sede do jornal satírico francês – ou revista - e as desnecessárias mortes, de ambos os lados, que chocaram o mundo. E há outras questões que estão sendo deixadas de lado (ou pelo menos não ganham a necessária ênfase que o assunto requer) que têm até mais importância na ordem desses acontecimentos, do que supõe a vã filosofia ocidental. Questões como segregação, que se transforma em guetos, discriminação religiosa ou étnica, além da dificuldade em se conviver com as diferenças.
A própria sociedade ocidental empurra os diferentes – e as diferenças - para lugares, onde ninguém gostaria de estar. Transforma-os em símbolos inequívocos da intolerância, quando professam algum tipo de fé que difere da não recomendada pelos manuais. Ou trazem em suas origens, nomes e sobrenomes, o estigma de culturas que dificilmente iríamos entender ou aceitar. E é justamente essa cultura e o exercício de seus princípios que, aos serem negadas e tolhidas, acabam por provocar reações longe de nossa compreensão e visão de um mundo que sempre nos foi negado conhecer. Ou melhor, o conhecemos de forma deturpada pela propaganda. Sempre negativa, diga-se. Isso não é uma defesa, e nem tem a pretensão de ser, do direito em tirar vidas e provocar o medo por ameaças incompreensíveis, cujos argumentos encontram-se na leitura equivocada de fundamentos religiosos, que transforma seus ensinamentos em licença para matar.
Nenhum campo é mais fértil para esse tipo de fanatismo, que assistimos derrubar monumentos, atentar contra a liberdade de expressão e tirar vidas inocentes, do que a segregação a que me referi anteriormente. A discriminação é uma porta aberta a qualquer tipo de crença ou ideologia, prestes a vir à tona, quando bem trabalhadas nas cabeças de todos aqueles que sentem na própria pele esse tipo de situação. E o fundamentalismo religioso – seja ele cristão ou muçulmano – se aproveita muito bem dessas oportunidades e entra porta adentro com tamanha facilidade que foge ao controle da própria sociedade. Os resultados, bem, os resultados já conhecemos sem, no entanto, tirar proveito de seus ensinamentos. As lições dessas tragédias ainda estão longe de estabelecerem o parâmetro necessário de compreensão, para que idioma, fé e cultura não sejam as diferenças que estimulem essas guerras-santas (o Ocidente também já foi jihadista no Oriente) mas um ponto de convergência para a paz. Se tenho o direito em defender minha liberdade de expressão, tenho o dever de lutar para garantir a do meu semelhante. Um princípio que vai muito além de qualquer Charlie Hebdo.

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